O Culto à Santíssima Virgem e o seu papel no Plano da Salvação-06


"Esta curta passagem nos traz considerações implícitas sobre o protocolo e o poder de estrutura da corte de Israel. Inicialmente, vimos que a Rainha-Mãe se aproximava de seu filho a fim de falar-lhe em nome de outra pessoa. Isso nos confirma o que já sabemos sobre as rainhas-mães nas outras culturas do Oriente Médio. Vemos no épico de Gilgamesh, por exemplo, que a Rainha-Mãe, na Mesopotânia, foi considerada uma intercessora, ou advogada, do povo.

Em seguida, percebe-se que Salomão se levantou de seu trono quando sua mãe entrou no recinto. Isso dá um destaque ao assunto sobre o qual a Rainha-Mãe queria tratar com o rei. Qualquer outra pessoa que viesse à presença do rei deveria seguir o protocolo, mesmo suas mulheres deveriam curvar-se diante dele (1Rs 1,16). Contudo, Salomão se levanta para honrar Betsabá, mostrando mais respeito por ela ao curvar-se e lhe dar o lugar de maior honra, ao seu lado direito. Sem dúvida, esse episódio descreve um ritual da corte no tempo de Salomão, mas um ritual que expressa um relacionamento real. O que nos dizem as atitudes do rei Salomão quanto ao relacionamento com sua mãe?

Inicialmente, seu poder e autoridade não são, de forma alguma, ameaçados por ela. Ele se curva para ela, mas continua sendo o rei. Ela senta-se à sua direita e não ao contrário." (p.67)

O livro dos Provérbios, no seu capítulo 31, traz uma longa passagem que nada mais é do que o conselho que a mãe do rei de Massa, Lamuel, lhe dá.

Já o livro dos Salmos (44,10) nos confirma a Rainha sentada à direita do Rei, "ornada de ouro de Ofir."

O fato de a Gebirah ter um papel tão importante em toda a descendência davídica - sem exceção - é algo que não se pode simplesmente abstrair. Se Jesus é mesmo Rei da Casa de Davi, Ele também terá uma Gebirah.

É esta relação antítipica entre Jesus e Maria - que realiza uma série de prelúdios proféticos - que permite compreender a passagem das Bodas de Caná. Com efeito, o papel de Maria naquela festa se identifica também à função da Rainha Mãe.

Outro indício de que a casa real de Israel de algum modo retoma as figuras de Adão e Eva como reis da criação se encontra naquela frase que Adão diz assim que vê Eva pela primeira vez: "Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne" (Gn 2,23), e que se assemelha muito ao que o povo de Israel diz quando Davi é erigido seu rei: "Não somos nós teus ossos e tua carne?" (2Sm 5,1)

A frase de Adão então assume um valor profético, que se realiza parcialmente em Israel, mas que tem sua consumação com o Novo Adão e a Nova Eva, coroada de estrelas, as 12 tribos, os 12 apóstolos da Nova Israel. O Dr. Scott conclui:

"A monarquia inicial da Criação não iria atingir os propósitos de Deus nem a monarquia de Davi, mas uma bem posterior. O Novo Adão, Jesus, reinaria como havia sido prenunciado no Jardim do Éden e nos tribunais de Salomão. O Novo Adão, o Novo monarca davídico, reinaria com Sua noiva, a nova Eva, e ela seria uma mulher histórica real, a quem o Apocalipse identificaria com a Igreja. Ela seria a mãe dos viventes, a advogada do povo, a Rainha-Mãe. Ela seria Maria!" (p. 70)

A Anunciação de Gabriel

Antes de Jesus nascer, Maria foi comunicada pelo Arcanjo Gabriel desta sua vocação, ao que ela consentiu com os célebres termos: "Faça-se em mim segundo a tua palavra." Esta anunciação sempre foi vista, pelos exegetas, como uma inversão da tentação de Eva por Lúcifer. Inclusive, a saudação "Ave", que é a forma latina do grego χαιρε, sempre foi visto também como uma inversão do nome de "Eva", indicando que Maria seria uma inversão de Eva na medida em que corrige, com a sua obediência, a desobediência da primeira mãe dos homens.

De fato, todas essas relações são muito convenientes para que se compreenda o intuito divino na história da salvação. Mas o grande ponto, aqui, é o que Gabriel diz à Virgem Maria. Haveria algum tipo de "segredo" nas expressões angélicas que denunciasse alguma condição particular de Maria? Sim, há.

Quando Lucas narra a anunciação, ele descreve a primeira saudação de Gabriel do seguinte modo:

"Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim. O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus." Lc 1,28-35)

Conviria analisar expressão por expressão. Mas, contentemo-nos a relembrar alguns significados de certas afirmações do Anjo e, em seguida, nos deteremos numa expressão em particular, que denuncia a absoluta singularidade de Maria, mais do que as demais.

Primeiramente, notamos o seguinte: desde Adão, nomear as coisas é um ato real. O Gênesis nos diz que os nomes que Adão dava eram os nomes verdadeiros dos entes. (Gn 2,19) Isto indica uma participação na faculdade criadora de Deus. Esta participação é dada. Adão é rei porque assim Deus lhe constitui. Maria recebe o encargo de nomear o filho de Deus, que, agora, "é carne da sua carne e osso dos seus ossos". Com efeito, eles são uma só carne, já que não há participação de homem na concepção de Jesus. Tudo isto faz relembrar novamente Adão e Eva.

"O Senhor Deus lhe dará o trono do seu pai Davi". Remetemos ao subtópico anterior, onde vimos que o trono de Davi possuía necessariamente um lugar de destaque para a Mãe do Rei, a Gebirah. Será um reino que não terá fim, o que indica que o papel singular de Maria também será perpétuo.

"O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra." Também já falamos disso: a expressão aqui usada é a mesma que refere a presença divina sobre o tabernáculo antigo, cuja santidade se devia à Arca da Aliança. O Anjo Gabriel nos confirma que Maria é a Nova Arca da Aliança. E ele deve saber do que fala.

E já que ele sabe do que fala, analisemos o início da sua saudação: "Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo". Vamos ao original:

"χαιρε κεχαριτωμενη ο κυριος μετα σου"

Posto em caracteres ocidentais, ficaria mais ou menos assim:

"Chaire, Kecharitomene, ho Kyrios meta sou"

Esta palavrinha κεχαριτωμενη (kecharitomene) é riquíssima de significado, e o usual "cheia de graça" não se aproxima senão de modo muito vago. É uma palavra composta do prefixo "ke", da palavra "Charitos", e do sufixo "Mene".

A palavra "Graça" é a tradução de "Charitos", que também é a origem de "Caridade". Isto se harmoniza perfeitamente com a teologia católica que afirma que a Caridade, virtude teologal, é dom de Deus, isto é, Graça divina. É o Espírito Santo o doador da Graça, a terceira pessoa da Santíssima Trindade e que está relacionada com a santificação da vontade - sendo Ele a processão da vontade divina -, e com o aperfeiçoamento dos entes na medida em que lhes orienta ao seu fim devido. Isto significa que a realização humana não está acessível ao esforço natural, mas deve ser concedida por Deus.

Ocorre que desde a Queda de Adão, todos estiveram privados da graça de Deus, pois esta graça é comunhão com Ele, é um estado de amizade. Como o pecado é passado por herança para todos os humanos - e o próprio cosmos o sofre -, a conclusão necessária era que o homem estava impedido de salvar-se a si mesmo. Apenas a Graça divina - que no Novo Testamento superabunda ao pecado e é fruto da Redenção operada por Jesus na Cruz - poderia trazer novamente ao homem a perspectiva da salvação. O Anjo Gabriel, ao anunciar à Virgem que ela seria Theotókos, isto é, Mãe de Deus, a declara, porém, cheia de Graça. Ora, pense o leitor, como isso é possível? Antes de explicá-lo, vamos aos demais termos.

O "Ke" inicial, que põe a expressão no "perfect tense" - uma espécie de mistura de passado e presente - indica a perfeição ou o grau máximo da qualidade referida - o estado atual de algo recebido antes -, o que indica que a Virgem não adquiriu aquele estado espiritual na anunciação. Ele lhe foi dado desde antes. Como a Graça não é fruto ou paga dos atos humanos, conclui-se que Maria não teve de ter méritos prévios à Graça. Portanto, esta deve ter-lhe sido dada desde o começo. Se isto é assim, temos que admitir que a Virgem nunca teve pecado, já que a Graça é diminuída por ele. E aqui divisamos a própria Imaculada Conceição, da qual falaremos mais adiante. "Ke" também indica alguma idéia de atemporalidade, na medida que o que não sofreu gradação ascendente - não foi dado aos poucos - também não a sofrerá descendente. Veja que isto não é uma conclusão forçada, mas necessária decorrente do próprio termo usado pelo anjo. Isso se quisermos dar algum crédito à Escritura.

A partícula "Mene" é um particípio que dá a idéia de sujeito, ou de elemento passivo. No caso, Maria recebeu esta graça. Ela não é a causa ativa desta graça. É a receptora. A expressão aqui assume o significado gramatical tanto de verbo (foi agraciada) quanto de substantivo (plena da graça). Por este motivo é que ela aparece no Apocalipse vestida de sol, pois Deus a possuiu. O próprio fato de ela ter sido fecundada pelo Espírito Santo já evoca de modo muito profundo esta idéia.

Assim, uma tradução mais precisa da expressão angélica seria:

"Salve, tu que foste, és e sempre serás plena da Graça divina."

O especialista protestante em grego Herbert Weir Smyth escreve:

"Enquanto que kecharitomene, particípio perfeito passivo, demonstra uma integralidade com um resultado permanente. Kecharitomene denota continuidade de uma ação completa." (H. W. Smyth, Greek Grammar [Cambridge: Harvard University Press, 1968.], p. 108-109, sec. 1852: b.).

Já o escritor Funk Blass, também protestante, bacharel em Teologia, mestre pela Butler University e PhD Vanderbilt University, escreve:

"É permissível no grego gramatical e no terreno linguístico parafrasear kecharitomene como completa, perfeita e permanentemente dotada com graça." e "Contudo, Lucas 1,28 usa uma forma conjugada especial de "charitoo". Ele usa "kecharitomene", enquanto que em Efésios 1,6 usa "echaritosen", que é uma forma diferente do verbo "charitoo". Echaritosen significa "ele agraciou" (graça concedida). Echaritosen significa uma ação momentânea, uma ação que pode passar." (Blass and DeBrunner, Greek Grammar of the New Testament, p.166)

Note que algo que é "completa, perfeita e permamentemente dotado de graça" é necessariamente privado de pecado. A mínima mancha de pecado impediria que algo fosse "completa, perfeita e permanentemente dotado de graça". Se o leitor quiser manter a lógica, a conclusão é necessária.

John Gresham Machen, teólogo presbiteriano, professor de Novo Testamento no seminário de Princeton, por sua vez, escreve:

"A ação 'perfeita' do particípio é considerada por ter sido completada antes do momento da fala daquele que anuncia." (J. Gresham Machen, New Testament greek for begginers, p.187)

Ou seja: a graça de que se fala nem é um tipo de "bom olhar divino" nem é resultante da encarnação do Verbo, mas é um estado espiritual anterior à Encarnação. Como vimos, este estado remonta ao início da existência de Maria, isto é, à sua concepção.

Fantástico, não?

Vamos agora responder a algumas dificuldades que são comumente levantadas pelos protestantes a respeito da Virgem.

Intercessora e Medianeira

Os católicos afirmamos que a Virgem Maria é intercessora e medianeira de todas as graças. Os protestantes, cativos da Sola Scriptura e, portanto, impedidos de uma compreensão acima da literal mais rasteira, desfavorecidos pela lógica mais básica, afirmam que isto contradiz a Bíblia em dois pontos.

1º - É dito que Jesus é o único mediador entre Deus e os homens. (1Tm 2,5) Considerando que a intercessão é uma mediação, ela estaria impedida também neste texto. Não deixa de ser impressionante que os mesmos que afirmam esta impossibilidade estejam o mais frequentemente pedindo orações aos irmãos e a seus ditos pastores. Ora, o que é orar por alguém senão interceder? Existe alguma lógica em proibir um e aceitar o outro? Não, não há. E considerando que nós vemos Paulo pedindo orações aos cristãos nas suas cartas, a única atitude coerente e sincera seria a de compreender e aceitar que a intercessão entre os cristãos não é um impedimento ou proibição; é, antes, uma recomendação.

Nada ajuda restringir a proibição aos santos, pois esta especificação - ou qualquer restrição ao afirmado - não é feita no texto. Além disto, considerando a possibilidade de haver pessoas no céu - ao que não se oporia a maioria dos protestantes - não se entende a impossibilidade de eles orarem por nós. No caso dos que negam a imortalidade da alma - o que é outro absurdo -, há alguns que aceitam a missão, também referida biblicamente, dos anjos da guarda. Se é permitido pedir orações a uma pessoa da igreja, por que seria proibido pedi-la a estes seres especialmente designados para o nosso cuidado? As contradições são infinitas.

Além disso, o que é pregar para alguém senão estabelecer uma mediação entre essa pessoa e Deus? O que é a Bíblia senão uma mediação? O que é uma canção senão uma mediação? O que é a água no batismo senão uma mediação? O que é uma igreja senão um meio, isto é, algo que realiza a mediação, entre o homem e Deus? Vê-se que a interpretação literal não se sustenta ao mínimo ato de inteligência. E é de fato impressionante que pessoas tão inteligentes se mantenham cativos de teias tão frágeis e evidentemente tão falsas.

Expliquemos, então, a aparente contradição entre a proibição textual e o campo do real. Quando Paulo o escreve, ele está a dizer o seguinte: desde a Queda de Adão, a humanidade se via escrava do pecado - o que só foi reforçado pela Lei - e impedida de se salvar. Jesus é o único que consegue reatar as relações entre Deus e a humanidade, e o faz por meio da Sua Cruz. Assim, qualquer afirmação de uma mediação entre Deus e os homens que seja alheia à mediação do Cristo é necessariamente falsa. Ocorre que a mediação dos santos não são alheias à do Cristo, mas possibilitadas por Ele. A partir da mediação absoluta de Jesus, originam-se uma série de novas possibilidades, suportadas, isto é, fundadas na d'Ele. É a pregação do Cristo que possibilita e dá razão de ser ao ofício dos pregadores cristãos. A mediação destes nasce da mediação única do Cristo. Esta nova dinâmica espiritual que se dá a partir do Cristo, que nos estabelece como corpo, sendo Ele a cabeça, chama-se comunhão dos santos, e é um dos dogmas da Igreja. Estamos vendo que ele nada mais é do que o resultado da reta compreensão das coisas.

A Virgem Maria, sendo particularmente agraciada, tem um papel muito particular de intercessora e medianeira. Provemos isto em mais uma concessão à Sola Scriptura.

1- Maria foi ou não o meio pelo qual Jesus nos veio? Foi. Embora Ele seja verdade que Ele poderia ter escolhido vir diretamente, é fato que decidiu vir por meio dela. Logo, Maria é meio da Encarnação e, portanto, da Redenção. Então repita comigo, leitor: "Maria é meio. Em outras palavras: Maria é medianeira entre Deus e os homens."

2- Isabel, de quem falaremos mais à frente, ficou cheia do Espírito Santo - o que purificou também a João Batista, no seu ventre - através da voz de Maria. Foi ou não foi? Se foi, Maria foi ou não meio de Deus? Foi. Maria foi meio para que Isabel ficasse cheia do Espírito Santo.

3- Vamos às bodas de Caná, de que já tratamos. Era o momento de Jesus realizar o primeiro milagre? Parece que não, né? Pelo menos é o que se depreende do que Jesus diz: "minha hora ainda não chegou." Maria no entanto insiste. Ela põe os servos em relação com Jesus. Põe ou não põe? Põe. Jesus depois realiza o milagre. Sim ou não? Sim. E por que o faz? Porque sua mãe o pediu. Se já ia realizar, por que falou o que falou? A conclusão é clara: realizou-o porque Sua Mãe lho pediu. Maria foi ou não meio e intercessora? Foi. A Bíblia é idólatra? Conclua..
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