O Culto à Santíssima Virgem e o seu papel no Plano da Salvação-03


E aqui, a festa de casamento assume um outro relevo. Assim como Adão e Eva casaram-se a fim de dar origem à descendência humana, assim também há um casamento espiritual entre o Novo-Adão e a Nova-Eva no que concerne à geração dos filhos da graça. Eva é chamada, no Gênesis, "mãe dos viventes". Maria também o será, obviamente, mas num sentido espiritual. Esta nova união, que marca a Nova Aliança, porém, tem um desfecho distinto do primeiro. No Gênesis, a coisa culminou com Eva conduzindo Adão ao pecado. Aqui, ao contrário, Maria como que conduz Jesus ao início da Sua obra.

Note ainda o que Jesus lhe diz: "Minha hora ainda não chegou". Ora, se não chegou então não chegou. Porém, Jesus realiza aí o Seu primeiro milagre. Isto significa que foi Maria quem propiciou isto. Ela antecipou a hora, e isto lhe dá uma relevância imensa no plano da Salvação. Jesus a obedeceu. Ou isso, ou era falso que a Sua hora ainda não tinha chegado. Penso que a conclusão de que Jesus mentiu é mais repugnante aos protestantes que a conclusão de que Jesus a obedeceu num momento tão crucial. Note o leitor que estas relações de fato não são arbitrárias e tampouco novas. Veremos que os primeiros leitores do Evangelho de João estavam muito conscientes disso tudo. Falaremos deles a seu tempo. Observemos agora o livro do Apocalipse.

"Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com sua cauda uma terça parte das estrelas do céu, e as atirou à terra. Esse Dragão deteve-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de que, quando ela desse à luz, lhe devorasse o filho. Ela deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações pagãs com cetro de ferro. Mas seu Filho foi arrebatado para junto de Deus e do seu trono. A Mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um retiro para aí ser sustentada por mil duzentos e sessenta dias." (Apo 12,1-6)



Este trecho retoma evidentemente algumas figuras do Gênesis, como a Mulher e o Dragão, a "primitiva serpente", que é obviamente a do Gênesis. Lembremos que o Apocalipse foi escrito pelo mesmo João que escreveu o Evangelho e que construiu aquelas relações com o primeiro livro. João é também o Apóstolo que viveu com a Virgem, em Éfeso, depois da morte de Jesus. Toda a tradição que virá daí será sempre muito mariana, conforme veremos.

Esta Mulher, no Apocalipse, é descrita com mais detalhes do que no Gênesis. Ela tem uma coroa de 12 estrelas, número que relembra tanto as 12 tribos de Israel quanto os 12 apóstolos, sendo estes últimos os chefes das tribos do Novo Testamento. Este fato parece ter relação com a Doutrina ensinada por eles, a chamada "Doutrina dos Apóstolos", a ortodoxia da Fé. O fato pode simbolizar também que ela seja rainha - pois está coroada - das 12 tribos, isto é, de todo o povo de Deus.


Ela está também vestida de sol, sendo que o sol sempre simbolizou o próprio Deus. As vestes geralmente representam o grau moral de uma pessoa. Se ela é pecadora, as vestes são vermelhas. Se é pura, são brancas. Uma mulher revestida de sol indica que está coberta do próprio Deus, num estado muito superior à mera pureza. Isto faz lembrar a anunciação de Gabriel que a declara plena da Graça, e de que falaremos mais detalhadamente depois. Seja como for, Deus está nela.

Tem a lua debaixo dos pés. A lua sempre foi associada à Virgem Maria, pois, assim como esta, ela não tem luz própria. O que se vê nela é a luz refletida do sol. Assim também, a grandeza de Maria é um reflexo da luz divina. Mas houve quem visse na lua o símbolo da inconstância, da oscilação, e que por Maria estar sobre a lua se indicava a firmeza plena e total da sua resolução, a total superação de qualquer inconstância. O "fiat" de Maria foi definitivo, sem retorno, sem olhares retroativos, sem reconsiderações. Foi um "sim" absoluto.

Porém, a "mulher", sobretudo em Apocalipse, tende a ser vista como um símbolo da Igreja, e de fato ela o é. Mas, assim como em Gênesis, o fato de ela simbolizar uma realidade não impede que simbolize outra. Por exemplo, o vinho simboliza tanto a alegria, quanto o mistério, quanto o próprio sacrifício de Cristo. O leão pode, a depender do contexto, simbolizar tanto o Cristo quanto o demônio. A profecia que Jesus faz sobre Jerusalém em Mc 1-13 diz respeito tanto à destruição do Templo pelo general romano Tito, quanto ao fim dos tempos. Porém, a explicação alegórica repousa sobre a literal. No caso que estamos observando, veremos que existe a mesma dificuldade, no Apocalipse, que encontramos em Gênesis: a mulher é mãe de Jesus. Ela é mãe do menino que regerá as nações pagãs com cetro de ferro, o que faz lembrar o Salmo 2,9 e o 110,2. Portanto, em primeira instância, não é a Igreja quem está sendo referida, mas a mãe do Cristo.

Porém, o trecho fica um tanto confuso quando, por exemplo, João relata, depois do supracitado, a luta entre Miguel e o demônio, que ocorreu antes da criação do homem. Assim, o que se tem não é exatamente uma sucessão direta de eventos, mas o entrelaçamento de acontecimentos que, a despeito de sua distância no tempo, têm íntima relação.

Quais seriam as dificuldades de se atribuir todo este texto a Maria? De fato, há algumas. A primeira é que a mulher grita em dores de parto. Segundo a tradição católica, a Virgem Maria não sentiu essas dores, e isto pelo fato de ter mantido a virgindade. As dores são resultado de um espaçamento de tecidos que faz perder a integridade física que caracteriza a virgindade feminina. Assim, ainda que uma mulher engravide sem perder a virgindade - o que é possível -, ela necessariamente a perderá no momento do parto, se o parto for normal. A virgindade de Maria foi mantida - e nisso creram todos os cristãos até a modernidade - pelo que ela não sentiu as dores do parto. São Cirilo de Alexandria costumava descrever este milagre através de uma analogia: assim como o raio de sol atravessa o vidro sem violentá-lo, assim também Jesus teria entrado e saído de sua mãe sem destituí-la de sua virgindade. É comum também que se use o exemplo de Jesus ressurreto entrando no cenáculo estando as portas fechadas e saindo de lá também sem abrir as portas. Santo Afonso de Ligório julgou ver um indicativo da ausência de sofrimento em Maria no próprio Evangelho de Lucas. Este escreve: "Estando eles ali, completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio." (Lc 2,6) Sto Afonso nota que o movimento da reclinação é incomum a alguém que recém deu à luz, de modo que haveria aqui um sinal de que Maria não teria sofrido no parto.

A personagem do Apocalipse, no entanto, sofre as dores de parto.


"Quem é essa mulher? - pergunta o Pe. Gabriele Amorth - É frequente na Bíblia uma mesma figura representar uma multiplicidade de sujeitos. Essa mulher pode representar a Igreja; pode representar o povo hebreu; seguramente representa Maria, dado que o seu Filho é Jesus." (2014, p.102)


Vamos considerar as três possibilidades do significado da mulher, que, lembramos, não são mutuamente excludentes: Maria, a Igreja e Israel.

Considerando que seja Maria, a primeira possibilidade é que a Tradição Católica esteja incorreta e que ela tenha sentido as dores de parto. Mas, assim, ela teria perdido a Virgindade. Porém, se tivesse perdido a Virgindade, não haveria motivo para abster-se das relações sexuais com José. Teria tido, assim, outros filhos. Porém, é facílimo de comprovar que Jesus foi filho único. Uma antiga tradição afirma que tanto a Virgem quanto São José, mesmo antes de se conhecerem, já haviam feito voto de castidade. E não é uma tradição flutuante. Ela parece fundamentar-se na própria escritura, mas disso não trataremos neste artigo.

Supondo que a mulher seja Maria, ainda, o que nos resta é entender as dores de parto como dores simbólicas. E isto poderia se referir, de um lado, à recusa de abrigo por ocasião do nascimento de Jesus. Consideramos esta possibilidade, porém, muito inverossímil. Por outro lado, a que julgamos fazer mais sentido entende as dores de parto como as dores da Cruz, pois, ali, de fato, Maria se torna novamente mãe, uma vez que Jesus entrega aos seus cuidados o "discípulo amado", que seríamos todos nós.

Esta parece ser a posição de São Pio X que escreveu:


"Que nascimento foi esse? Certamente foi o nascimento de cada um de nós que, ainda no exílio, estamos sendo gerados para a perfeita caridade em Deus e para a felicidade eterna. E as dores do parto mostram o amor e o desejo com que a Virgem do céu, lá de cima, cuida de nós, e se esforça com incansável oração para completar o número dos eleitos."


A dificuldade desta possibilidade é que, segundo o Apocalipse, as dores de parto antecedem o nascimento daquele que regerá com cetro de ferro, isto é, Jesus. Literais ou simbólicas, essas dores parecem ter de vir antes.

Por isso, parece-nos ter mais sentido o que o Dr. Scott Hahn escreve a este respeito:

"Alguns se opuseram quanto às dores de parto da mulher, que pareciam contradizer à longa Tradição de que Maria teria dado à luz sem as dores do parto. Muitos cristãos acreditam que, uma vez que Maria foi concebida sem o pecado original, ela estaria isenta das maldições de Gênesis 3,16; portanto, não sentiria qualquer sofrimento no parto. Ora, o sofrimento de uma mulher não necessariamente está relacionado às dores físicas do parto. Em outras passagens do Novo Testamento, São Paulo usa a dor do parto como uma metáfora para o sofrimento espiritual, para o sofrimento em geral, ou mesmo para o longo tempo de sofrimento do mundo na expectativa da Redenção no fim dos tempos (Gl 4,19; Rm 8,22). O sofrimento da mulher do Apocalipse poderia representar o desejo de trazer Cristo ao mundo; ou poderia representar os sofrimentos espirituais como o preço da maternidade de Maria."(p.54-55)

Porém, a coisa complica ainda mais se considerarmos que a mulher, neste ponto específico, é um símbolo da Igreja, pois como a Igreja poderia sentir as dores de parto se não é mãe do Cristo? Ela, é verdade, pode ser dita mãe dos cristãos - embora me pareça que mesmo esta designação soe estranha aos ouvidos protestantes. Porém, como dito logo acima, às dores se segue o nascimento do Cristo. Portanto, a mulher é necessariamente mãe do Cristo. E se alguém insistir em contestar, pedimos que responda francamente a esta pergunta: é a Igreja mãe de Jesus? E, no caso imprevisto de uma resposta afirmativa, perguntamos: com base em quê se o afirma?

Uma terceira possibilidade que geralmente se levanta é que a mulher seja Israel. De fato, isto se harmonizaria com algumas coisas, como, por exemplo, nas dores de parto - era um tempo difícil em Jerusalém -, nas doze estrelas - que simbolizaria as doze tribos - e em ser mãe do Messias, uma vez que este, vindo de Israel, é seu filho, especificamente da Casa de Davi, da tribo de Judá.
O Culto à Santíssima Virgem e o seu papel no Plano da Salvação-03 O Culto à Santíssima Virgem e o seu papel no Plano da Salvação-03 Reviewed by utilidadepublica on 19:57 Rating: 5

Nenhum comentário:

Gallery

Tecnologia do Blogger.