É UM ERRO NÃO OUSAR OFERECER AS PRÓPRIAS AÇÕES A DEUS POR NÃO TEREM TODA A PERFEIÇÃO QUE SE DESEJARIA, E QUE SE JULGA NECESSÁRIA.
Dizeis que não ousais oferecer as vossas ações a Deus; e as perdeis quase todas, porque a idéia que tendes da grandeza de Deus, da Sua santidade infinita, vos representa vivamente toda a perfeição que uma ação deve ter para ser digna d’Ele. Ainda não sentis em vós essa determinação de tender à perfeição que encarais. A tentação persuade-vos de que, se não derdes às vossas ações essa perfeição que julgais indispensável, elas não podem agradar a Deus, e de que Ele as rejeita absolutamente. Guiada por este erro, nada ou quase nada ofereceis ao Senhor. Perdendo de vista a Deus, já não seguis senão as vossas inclinações; e, por isso que não vos sentis disposta a vos constranger em tudo, não vos constrangeis em nada.
Semelhante princípio só pode conduzir à inação para as coisas do Céu. Que cristão se aplicará aos seus deveres para agradar a Deus, para glorificar a Deus, se meter na cabeça que Deus não aceitará as suas ações se ele não lhes der toda a perfeição que ele acredita haver nas dos Santos?
É aqui que deveis aplicar o conselho de Santo Agostinho: “Fazei o que puderdes, e pedi o que não puderdes, a fim de o poderdes”. Esse grande Santo pensava bem diferentemente de vós, quando assim falava ao seu povo. Ele sabia que o nosso Deus, sempre um Pai terno e compassivo, que conhece bem o limo de que somos formados, vem sempre em nosso socorro para nos fortificar, e nos ajuda segundo a nossa confiança n’Ele.
Não se chega de chofre à perfeição. Faz-se progresso na ciência da salvação, com o socorro da graça, consoante a Providência ordinária, como se faz progresso nas ciências naturais, pela aplicação dos princípios à prática. Esta aplicação torna-se sempre mais perfeita pelo uso mais frequente que dela se faz e pela atenção que se lhe dá. Um artista que não quisesse fazer nenhuma obra da sua arte, um orador que não quisesse empreender nenhum discurso, por não poderem ainda dar às suas obras toda a perfeição dos grandes mestres, com razão se diria que, por essa conduta insensata, eles nunca chegariam a alguma coisa. Não basta conhecer os princípios, cumpre aplicá-los com justeza. Os talentos desenvolvem-se pouco a pouco pelo exercício. Antes de dar à sua obra toda a perfeição que lhe convém, fazem-se muitas obras imperfeitas. É só por um trabalho assíduo que se consegue corrigir os defeitos que se reconhecem na obra: a experiência é sobejamente constante para que se possa duvidar disso. É pelas reflexões sobre as próprias faltas que se aprende a evitá-las: para isso, importa ensaiar-se cedo, não se contentar com a teoria, e pôr mãos à obra.
Na ciência dos Santos, e na prática das virtudes, além da aplicação e da assiduidade, necessita-se de um socorro particular da parte de Deus. Suponho que, pelo desejo que se tem de lhe agradar, pede-se-Lhe amiúde esse socorro, como o artista recorre ao seu mestre. No mais, os princípios que acabamos de assentar são os mesmos. Uma alma cristã não conseguirá corrigir-se pelo simples conhecimento das regras que devem dirigi-la, mas sim pela aplicação dessas regras à sua conduta. Se ela não os aplicar, na prática nada fará para se aperfeiçoar. Admito que, oferecendo a Deus as suas ações, ela ainda não lhes dá toda a perfeição que elas poderiam ter; mas, pelo menos, lhes suprimirá sempre alguma imperfeição, e por esse modo torná-las-á menos defeituosas aos olhos de Deus. O sacrifício que ela fará a Deus desse defeito tornar-se-lhe-á útil, quer pelo hábito que ela contrairá de se vencer em mira a Deus, quer pelas graças que essa docilidade às luzes do Espírito Santo lhe atrairá.
Fazei, pois, sempre o que puderdes, e pedi com confiança o que não puderdes.
Uma pessoa extremamente viva, fortemente apegada à sua vontade, ao seu juízo particular, nas relações que tiver com o próximo deixar-se-á levar, vinte vezes ao dia, à impaciência, à impetuosidade do seu caráter: se ela não pensar em que todas as suas ações devem ser referidas a Deus, nada será capaz de detê-la, mas, ao contrário, este pensamento, se ela a ele se prender, detê-la-á primeiramente nas ocasiões mais fáceis; e, se noutras não a detiver inteiramente, pelo menos lhe moderará os ímpetos, lhe fará cortar muitas coisas que a caridade condena. Finalmente, se esse pensamento não tiver nenhum efeito, será uma resistência à graça, coisa de que é preciso pedir perdão a Deus. Todavia, essa mesma falta servirá para corrigi-la, quer pelo fato de humilhá-la diante do Senhor, quer pelas reflexões salutares que ela fará sobre a sua vivacidade quando, mais tranquila, testemunhar a Deus o seu pesar por isso.
O que aqui se diz da vivacidade deve aplicar-se a qualquer outro defeito que pode tornar defeituosas e imperfeitas as ações.
É certo, e a experiência o confirma, que resulta sempre um bem dessa referência das próprias ações a Deus. Este pensamento: É para Deus que eu quero agir, não pode deixar de produzir uma impressão salutar, não pode deixar de animar a evitar os defeitos que podem insinuar-se na ação, de sustentar enfim no combate que se tem consigo mesmo. Por pouco fiel que sejamos a esta prática, experimentaremos que tornamos as nossas ações sempre menos defeituosas, que de dia para dia as tornamos mesmo mais perfeitas, pelo socorro das graças que recebemos.
Deus nunca deixa sem recompensa a boa vontade que lhe testemunhamos empregando os meios que Ele nos designou para nos tornarmos melhores. “Andai na minha presença, diz Ele a Abraão, e sereis perfeito” (Gn 17, 1). Andar na presença de Deus é referir a Ele todas as nossas ações.
Mas, finalmente, quando eu oferecer a Deus a minha ação, na qual se insinuarão muitas negligências, e mesmo faltas, posso lisonjear-me de que essa ação tão imperfeita me seja de alguma utilidade, e de que o Senhor queira levar-ma em conta?
Suponho que, quando se oferece a Deus a sua ação, por mais temor que a experiência suscite, não se está na determinação de cometer as faltas que se prevêem ou que se temem. Se, no curso da ação, nos tornamos fraco, frouxo, tíbio, negligente, infiel, sem dúvida Deus não olhará as nossas negligências e as nossas faltas senão para no-las exprobrar; mas as Suas exprobrações serão as de um Pai terno que tem compaixão da nossa fraqueza. Elas vos animarão a precaver-vos contra a covardia a que destes ouvido; e, por um efeito dessa misericórdia infinita de que usa a nosso respeito, Ele receberá o bom desejo que lhe houverdes mostrado, embora a execução dele seja tão imperfeita.
Uma alma cristã reconhece então com humildade a sua fraqueza, a sua inconstância; reanima a sua confiança, o seu amor; redobra as suas preces, na esperança de que Deus lhe dará mais graças para se tornar mais fiel. Guardar-se-á bem de abandonar, seja lá quando for, os meios que lhe podem ser úteis para se corrigir. Repitamo-lo sem cessar: ela faz o que pode; pede o que ainda não pode: sempre na confiança de que esse meio, que vem de Deus, se não tem hoje todo o efeito que deve ter, tê-lo-á dentro em um mês, tê-lo-á enfim certamente, se ela não o desprezar, e se for constante em empregá-lo.
Padre J. Michel - 1952
TRATADO DO DESÂNIMO
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